ENTREVISTA: JACQUES LACAN





Emilio Granzotto
Tradução: Marcia Gatto



Nesta entrevista concedida à revista italiana Panorama, em 1974, Jacques Lacan fala do retorno da religião e do cientificismo. A psicanálise é para ele o baluarte aceitável contra as angústias contemporâneas e a considera algo sério que diz respeito a uma relação estritamente pessoal entre dois indivíduos: o sujeito e o analista. Afirma ainda que não existe psicanálise coletiva assim como não existe angústias ou neuroses de massa.


Emilio Granzotto: Fala-se cada vez mais freqüentemente de crise da psicanálise. Sigmund Freud, dizem, está ultrapassado, a sociedade moderna descobriu que sua obra não seria suficiente para compreender o homem nem para interpretar a fundo sua relação com o mundo.


Jacques Lacan: São histórias. Em primeiro lugar, a crise. Ela não existe, não pode existir. A psicanálise não encontrou exatamente seus próprios limites, ainda não. Ainda há tanto a descobrir na prática e no conhecimento. Em psicanálise, não há solução imediata, mas somente a longa e paciente busca das razões. Em segundo lugar, Freud. Como julgá-lo ultrapassado se nós ainda não o compreendemos inteiramente? O que é certo, é que ele nos fez conhecer coisas extremamente novas, que não poderíamos nem imaginar antes dele. Desde os problemas do inconsciente à importância da sexualidade, do acesso ao simbólico ao assujeitamento às leis da linguagem. Sua doutrina colocou em questão a verdade, é algo que concerne a todos e cada um pessoalmente. Uma crise é outra coisa. Eu o repito: estamos longe de Freud. Seu nome serviu para cobrir muitas coisas, houve desvios, os epígonos nem sempre seguiram fielmente o modelo, confusões foram criadas. Após sua morte em 1939, alguns de seus alunos também pretenderam exercer a psicanálise de maneira diferente, reduzindo seu ensinamento a alguma fórmula banal: a técnica como ritual, a prática como restrita ao tratamento do comportamento, e como meio de readaptação do indivíduo a seu meio social. É a negação de Freud, uma psicanálise de conforto, de salão. Ele próprio o havia previsto. Há três posições insustentáveis, dizia ele, três tarefas impossíveis: governar, educar e exercer a psicanálise. Atualmente, pouco importa quem assume a responsabilidade de governar, e todo o mundo se pretende educador. Quanto aos psicanalistas, graças a Deus, eles prosperam, como os magos e curandeiros. Propor às pessoas ajudá-las significa um sucesso assegurado, e a clientela se acotovelando na porta. A psicanálise é outra coisa.


Emilio Granzotto: O que exatamente?


Jacques Lacan: Eu a defino como sintoma – revelador do mal-estar da civilização na qual vivemos. Certo, não é uma filosofia. Detesto a filosofia, há tanto tempo ela não diz nada de interessante. A psicanálise também não é uma fé, e não me agrada chamá-la de ciência. Digamos que é uma prática e que ela se ocupa do que não está funcionando. Terrivelmente difícil porque ela pretende introduzir na vida do dia-a-dia o impossível, o imaginário. Ela obteve alguns resultados até o presente, mas ainda não tem regras e se presta a toda sorte de equívocos. É preciso não esquecer que se trata de algo totalmente novo, seja do ponto de vista da medicina, seja do da psicologia e seus anexos. Ela também é muito jovem. Freud morreu há apenas trinta e cinco anos. Seu primeiro livro, A interpretação dos sonhos, foi publicado em 1900 com muito pouco sucesso. Foram vendidos, creio, trezentos exemplares em alguns anos. Ele tinha poucos alunos, tomados por loucos e nem mesmo de acordo com a maneira de colocar em prática e de interpretar o que tinham aprendido.


Emilio Granzotto: O que não funciona hoje no homem?


Jacques Lacan: É essa grande lassidão, a vida como conseqüência da corrida pelo progresso. Através da psicanálise, as pessoas esperam descobrir até onde podemos ir carregando essa lassidão.


Emilio Granzotto: O que empurra as pessoas a se fazer analisar?


Jacques Lacan: O medo. Quando lhe acontecem coisas, mesmo desejadas por ele, coisas que ele não compreende, o homem tem medo. Ele sofre por não compreender, e pouco a pouco cai num estado de pânico. É a neurose. Na neurose histérica, o corpo fica doente de medo de estar doente, e sem estar na realidade. Na neurose obsessiva, o medo coloca coisas bizarras na cabeça, pensamentos que não podemos controlar, fobias nas quais as formas e os objetos adquirem significações diversas, e que dão medo.


Emilio Granzotto: Por exemplo?


Jacques Lacan: Acontece ao neurótico se sentir pressionado por uma necessidade assustadora de ir dezenas de vezes verificar se uma torneira está realmente fechada, ou se uma coisa está no lugar correto, sabendo entretanto com certeza que a torneira está como deve estar e que a coisa está no lugar onde ela deve se achar. Não há pílulas para curar isso. É preciso descobrir porque isso acontece conosco, e saber o que isso significa.


Emilio Granzotto: E o tratamento?


Jacques Lacan: O neurótico é um doente que se trata com a palavra, e acima de tudo, com a dele. Ele deve falar, contar, explicar-se a si próprio. Freud define a psicanálise como a assunção da parte do sujeito de sua própria história, na medida em que ela é constituída pela palavra endereçada a um outro. A psicanálise é a rainha da palavra, não há outro remédio. Freud explicava que o inconsciente não é tão profundo quanto inacessível ao aprofundamento consciente. E ele dizia que nesse inconsciente, aquele que fala é um sujeito dentro do sujeito, transcendendo o sujeito. A palavra é a grande força da psicanálise.


Emilio Granzotto: Palavra de quem? Do doente ou do psicanalista?


Jacques Lacan: Em psicanálise os termos “doente”, “médico”, “remédio” não são mais justos que as fórmulas no passivo que adotamos comumente. Dizemos: se fazer psicanalisar. É um erro. Aquele que faz o verdadeiro trabalho em psicanálise, é aquele que fala, o sujeito analisante. Mesmo se ele o faz da maneira sugerida pelo analista, que lhe indica como proceder e o ajuda por suas intervenções. Lhe é também fornecida uma interpretação. À primeira vista, ela parece dar um sentido ao que o analisante diz. Na realidade, a interpretação é mais sutil, tendendo a apagar o sentido das coisas pelas quais o sujeito sofre. O objetivo é mostrar-lhe através de sua própria narrativa que o sintoma, a doença digamos, não tem nenhuma relação com nada, que ela é privada de qualquer sentido que seja. Mesmo se na aparência ela é real, ela não existe. As vias pelas quais esse ato da palavra procede, reclamam muita prática e uma infinita paciência. A paciência e a medida são os instrumentos da psicanálise. A técnica consiste em saber medir a ajuda que damos ao sujeito analisante. Em conseqüência, a psicanálise é difícil.


Emilio Granzotto: Quando falamos de Jacques Lacan, associamos inevitavelmente esse nome a uma fórmula, o “retorno a Freud”. O que isso significa?


Jacques Lacan: Exatamente o que é dito. A psicanálise é Freud. Se queremos fazer psicanálise, é necessário voltar a Freud, a seus termos e a suas definições, lidos e interpretados no sentido literal. Fundei em Paris uma Escola freudiana precisamente com esse objetivo. Há vinte anos ou mais que exponho meu ponto de vista: retornar a Freud significa simplesmente tirar o terreno dos desvios e dos equívocos da fenomenologia existencial, por exemplo, como do formalismo institucional das sociedades psicanalíticas, retornando a leitura do ensinamento de Freud segundo os princípios definidos e enumerados a partir de seu trabalho. Reler Freud quer dizer somente reler Freud. Quem não faz, em psicanálise, utiliza uma fórmula abusiva.


Emilio Granzotto: Mas Freud é difícil? E Lacan, dizem, o torna completamente incompreensível. A Lacan repreende-se falar e sobretudo escrever de tal maneira que somente muito poucos adeptos podem esperar compreender.


Jacques Lacan: Eu sei, tornam-me por um obscuro que esconde seu pensamento em cortinas de fumaça. Eu me pergunto por que. A propósito da análise, repito com Freud que é “o jogo intersubjetivo através do qual a verdade entra no real”. Não está claro? Mas a psicanálise não é um negócio para crianças. Meus livros são definidos como incompreensíveis. Mas para quem? Eu não os escrevi para todo o mundo, para que sejam compreendidos por todos. Ao contrário, nunca me ocupei minimamente de qualquer leitor que seja. Eu tinha coisas a dizer e as disse. É me suficiente ter um público que leia. Se ele não compreende, paciência. Quanto ao número de leitores, tive mais sorte que Freud. Meus livros são mesmo muito lidos, fico surpreso com isso. Também estou convencido de que em dez anos no máximo, aquele que me lerá me achará extremamente transparente, como um belo copo de cerveja. Talvez até se diga então: “Esse Lacan, que banalidade!”


Emilio Granzotto: Quais são as características do lacanismo?


Jacques Lacan: É um pouco cedo para dizê-lo, no momento em que o lacanismo ainda não existe. Sentimos dele apenas o cheiro, como pressentimento. Lacan, em todos os casos, é um senhor que pratica a psicanálise há pelo menos quarenta anos, e que há tantos anos a estuda. Eu creio no estruturalismo e na ciência da linguagem. Escrevi em meu livro que “aquilo a que nos leva a descoberta de Freud é à enormidade da ordem na qual entramos, na qual nascemos, se podemos nos exprimir assim, uma segunda vez, saindo do estado chamado a justo título infans, sem palavra”. A ordem simbólica sobre a qual Freud fundou sua descoberta é constituída pela linguagem como momento do discurso universal concreto. É o mundo da palavra que cria o mundo das coisas, inicialmente confusas em tudo aquilo que está em devir. Há somente as palavras para dar um sentido completo à essência das coisas. Sem as palavras, nada existiria. O que seria o prazer sem o intermediário da palavra? Minha opinião é que Freud, enunciando em suas primeiras obras – A interpretação dos sonhos, Além do princípio do prazer, Totem e tabu – as leis do inconsciente, formulou, como precursor, as teorias com as quais alguns anos mais tarde Ferdinand de Saussure teria aberto a via à lingüística moderna.


Emilio Granzotto: E o pensamento puro?


Jacques Lacan: Ele está submetido como todo o resto às leis da linguagem. Somente as palavras podem engendrá-lo e dar-lhe consistência. Sem a linguagem a humanidade não daria um passo adiante nas pesquisas / buscas do pensamento. É o caso da psicanálise. Qualquer que seja a função que possamos lhe atribuir, agente de cura, formação ou de sondagem, há apenas um meio do qual nos servimos: a palavra do paciente. E toda palavra merece resposta.


Emilio Granzotto: A análise como diálogo, portanto. Há pessoas que a interpretam mais como um sucedâneo da confissão.


Jacques Lacan: Mas que confissão? Ao psicanalista confessamos um belo nada. Deixamo-nos ir a lhe dizer simplesmente tudo que se passa pela cabeça. Palavras, precisamente. A descoberta da psicanálise é o homem como animal falante. Cabe ao analista ordenar as palavras que ele ouve e dar-lhes um sentido, uma significação. Para fazer uma boa análise, é necessário o acordo, o entendimento entre o analisante e o analista. Através do discurso de um, o outro procura imaginar do que se trata, e encontrar além do sintoma aparente o nó difícil da verdade. A outra função do analista é explicar o sentido das palavras para fazer compreender ao paciente o que se pode esperar da análise.


Emilio Granzotto: É uma relação de extrema confiança.


Jacques Lacan: Mais uma troca, na qual o importante é que um fala e o outro escuta. Também o silêncio. O analista não faz pergunta e não tem idéias. Ele só dá as respostas que ele quer realmente dar às questões que sua vontade suscita. Mas ao final, o analisante vai sempre aonde seu analista o leva.


Emilio Granzotto: O senhor acaba de falar do tratamento. Há possibilidade de curar? Sai-se da neurose?


Jacques Lacan: A psicanálise tem sucesso quando ela limpa o terreno, sai do sintoma, sai do real. Quer dizer quando ela chega à verdade.


Emilio Granzotto: O senhor pode enunciar o mesmo conceito de uma maneira menos lacaniana?


Jacques Lacan: Eu chamo sintoma tudo aquilo que vem do real. E o real tudo aquilo que não vai bem, que não funciona, que se opõe à vida do homem ao afrontamento de sua personalidade. O real volta sempre ao mesmo lugar. Você sempre encontrará lá, com os mesmos semblantes. Por mais que os cientistas digam que nada é impossível no real. É preciso ter um grande topete para afirmar coisas desse gênero, ou então, como eu suspeito, a total ignorância do que se faz e diz. O real e o impossível são antitéticos, eles não podem caminhar juntos. A análise empurra o sujeito para o impossível, ela lhe sugere considerar o mundo como ele é realmente, isto é, imaginário, sem significação. Enquanto que o real, como um pássaro voraz, só faz se alimentar de coisas sensatas, de ações que têm sentido. Ouve-se repetir que é preciso dar um sentido a isso e a aquilo, a seus próprios pensamentos, a suas próprias aspirações, aos desejos, ao sexo, à vida. Mas da vida não sabemos nada de nada. Os sábios perdem o fôlego a nos explicar. Meu medo é que por seus erros, o real, essa coisa monstruosa que não existe, acabe por conseguir, por levar a melhor. A ciência é substituída pela religião, e ela é de outra maneira mais despótica, obtusa e obscurantista. Há um deus-átomo, um deus-espaço, etc. Se a ciência ganha ou a religião, a psicanálise está acabada.


Emilio Granzotto: Atualmente, que relação existe entre a ciência e a psicanálise?


Jacques Lacan: Para mim a única ciência verdadeira, séria, a ser seguida, é a ficção científica. A outra, a oficial, que tem seus altares nos laboratórios, avança às cegas, sem meio correto. E ela até começa a ter medo de sua sombra. Parece que chegou o momento da angústia para os sábios. Em seus laboratórios assépticos, alinhados em seus jalecos engomados, esses velhos bambinos que brincam com coisas desconhecidas, fabricando aparelhos cada vez mais complicados e inventando fórmulas cada vez mais obscuras, começam a se perguntar o que poderá acontecer amanhã, o que essas pesquisas sempre novas acabarão por trazer. Enfim! Digo. E se fosse muito tarde? Os biólogos se perguntam agora, ou os físicos, os químicos. Para mim, eles são loucos. Já que eles já estão mudando a face do universo, vem-lhes ao espírito somente agora se perguntar se por acaso isso pode ser perigoso. E se tudo explodisse? Se as bactérias criadas tão amorosamente nos brancos laboratórios se transformassem em inimigos mortais? Se o mundo fosse varrido por uma horda dessas bactérias com toda a merda que o habita, a começar por esses sábios dos laboratórios? Às três posições impossíveis de Freud, governo, educação, psicanálise, eu acrescentaria uma quarta, a ciência. Ademais, que os sábios não sabem que sua posição é insustentável.


Emilio Granzotto: Eis uma versão bastante pessimista do que chamamos progresso.


Jacques Lacan: Não, é algo completamente diferente. Eu não sou pessimista. Nada acontecerá. Pela simples razão de que o homem é uma porcaria, nem mesmo capaz de destruir a si próprio. Pessoalmente, acharia maravilhoso um flagelo total produzido pelo homem. Isso seria a prova de que ele conseguiu fazer alguma coisa com suas mãos, sua cabeça, sem intervenções divina, natural ou outros. Todas essas belas bactérias superalimentadas para a diversão, espalhadas através do mundo como os gafanhotos da Bíblia, significariam o triunfo do homem. Mas isso não acontecerá. A ciência atravessa felizmente essa crise de responsabilidade, tudo entrará na ordem das coisas, como se diz. Eu anunciei: o real levará vantagem, como sempre. E nós estaremos como sempre ferrados.


Emilio Granzotto: Outro paradoxo de Jacques Lacan. Censuram-lhe, além da dificuldade da língua e a obscuridade dos conceitos, os jogos de palavras, os gracejos de linguagem, os trocadilhos à francesa, e justamente, os paradoxos. Aquele que escuta ou que lê o senhor tem o direito de se sentir desorientado.


Jacques Lacan: De fato eu não brinco, digo coisas muito sérias. Eu apenas me sirvo da palavra como os sábios de que falei de seus almanaques e de suas montagens eletrônicas. Eu procuro me referir sempre à experiência da psicanálise.


Emilio Granzotto: O senhor diz: o real não existe. Mas o homem médio sabe que o real é o mundo, tudo que o cerca, que ele vê a olho nu, toca.


Jacques Lacan: Livremo-nos também desse homem médio que, em primeiro lugar, não existe. É apenas uma ficção estatística. Existem indivíduos, é tudo. Quando ouço falar do homem da rua, de pesquisas de opinião, de fenômenos de massa e de coisas desse gênero, penso em todos os pacientes que vi passar pelo divã em quarenta anos de escuta. Nenhum, em qualquer medida, é semelhante ao outro, nenhum tem as mesmas fobias, as mesmas angústias, o mesmo modo de contar, o mesmo medo de não compreender. O homem médio, quem é? Eu, o senhor, meu zelador, o presidente da República?


Emilio Granzotto: Nós falávamos de real, do mundo que todos nós vemos.


Jacques Lacan: Justamente. A diferença entre o real, isto é, o que não vai bem, e o simbólico, o imaginário, isto é, a verdade, é que o real é o mundo. Para constatar que o mundo não existe, que ele não está aqui, é suficiente pensar em todas as banalidades que uma infinidade de imbecis acreditam ser o mundo. E convido meus amigos da Panorama, antes de me acusarem de paradoxo, a refletirem bem sobre o que leram apenas.


Emilio Granzotto: Dir-se-ia que o senhor está cada vez mais pessimista.


Jacques Lacan: Não é verdade. Não me enquadro nem entre os alarmistas nem entre os angustiados. Infeliz do psicanalista que não tiver ultrapassado o estádio da angústia. É verdade, existem à nossa volta coisas horripilantes e devoradoras, como a televisão pela qual uma grande parte de nós é fagocitada. Mas isto é apenas porque existem pessoas que se deixam fagocitar, que até inventam um interesse para aquilo que elas vêem. E depois há outras coisas monstruosas devoradoras de outra maneira: os foguetes que vão à lua, as pesquisas no fundo dos oceanos, etc. Todas as coisas que devoram. Mas não há porque se fazer um drama disso. Estou certo de que assim que estivermos de saco cheio de foguetes, da televisão e de todas suas malditas pesquisas no vazio, encontraremos outra coisa com a qual nos ocuparmos. É uma revivescência da religião, não é? E que melhor monstro devorador do que a religião? É uma festa contínua com a qual se divertir por séculos, como isso já foi demonstrado. Minha resposta a tudo isso é que o homem sempre soube se adaptar ao mal. O único real que podemos conceber, ao qual temos acesso, é justamente este, será preciso se fazer uma razão: dar um sentido às coisas, como dizíamos. De outra forma, o homem não teria angústia, Freud não teria se tornado célebre, e eu seria professor de segundo grau.


Emilio Granzotto: As angústias são toda dessa natureza ou existem angústias ligadas a certas condições sociais, a certa época histórica, a certas latitudes?


Jacques Lacan: A angústia do sábio que tem medo de suas descobertas pode parecer recente. Mas o que sabemos nós do que aconteceu em outros tempos? Dos dramas de outros pesquisadores? A angústia do operário escravo da cadeia de montagem como de um remador de galera, é a angústia de hoje. Ou, mais simplesmente, ela está ligada às definições e palavras de hoje.


Emilio Granzotto: Mas o que é a angústia para a psicanálise?


Jacques Lacan: Algo que se situa fora de nosso corpo, um medo, mas de nada, que o corpo, espírito incluído, possa motivar. O medo do medo, em suma. Muitos desses medos, muitas dessas angústias, no nível em que os percebemos têm a ver com o sexo. Freud dizia que a sexualidade é sem remédio e sem esperança. Uma das tarefas do analista é encontrar na palavra do paciente a relação entre a angústia e o sexo, esse grande desconhecido.


Emilio Granzotto: Agora que se distribui sexo em todas as curvas, sexo no cinema, sexo no teatro, na televisão, nos jornais, nas canções, nas praias, ouve-se dizer que as pessoas estão menos angustiadas com os problemas ligados à esfera sexual. Os tabus caíram, dizem, o sexo não dá mais medo.


Jacques Lacan: A sexomania invasora é apenas um fenômeno publicitário. A psicanálise é uma coisa séria que diz respeito, repito-o, a uma relação estritamente pessoal entre dois indivíduos: o sujeito e o analista. Não existe psicanálise coletiva assim como não existe angústias ou neuroses de massa. Que o sexo seja colocado na ordem do dia e exposto na esquina das ruas, tratado como um detergente qualquer nos carrosséis televisivos, não comporta nenhuma promessa de algum benefício. Não digo que isso seja ruim. Não é suficiente certamente para tratar as angústias e os problemas particulares. Faz parte da moda, dessa fingida liberalização que nos é fornecida, como um bem dado de cima, pela dita sociedade permissiva. Mas não serve ao nível da psicanálise.






» Entrevista concedida à revista italiana Panorama, em 1974 e publicada por Magazine Littéraire, Paris, n.428, em fevereiro de 2004.








Abaixo essa mesma entrevista ampliada e a transcrição de integrantes da Association Freudienne Internationale.









ENTREVISTA NO CENTRE CULTUREL FRANÇAIS - ROME


29 de outubro de 1974
Nota sobre a tradução
O grupo de tradução francês-português, criado por iniciativa do Cartel da América Latina da Association Freudienne Internationale, constituiu-se a partir de setembro de 1995 para traduzir Litturaterre (Lacan, 1971).


A confrontação com o estilo de Lacan e especialmente com este texto em que a letra está em primeiro plano abriu uma trilha que, de Lituraterra à Terceira, levou-nos a elaborar um estilo de tradução de Lacan em português que ora apresentamos e submetemos ao leitor brasileiro.


Este estilo acaba sendo o resultado teimoso de tentar sustentar algumas apostas. A primeira delas seria a de trazer para o português a virulência significante do texto original, ou seja, uma tradução que levasse em conta a própria teoria lacaniana da linguagem da qual alguns aspectos são ressaltados por Lacan na Terceira: "... a linguagem é verdadeiramente o que só pode avançar torcendo-se e enrolando-se, contornando-se de uma maneira da qual afinal de contas não posso dizer que não dou aqui o exemplo. Não se deve acreditar que, ao aceitar o desafio lançado por ela, ao marcar em tudo que nos concerne até que ponto nós dependemos dela, não se deve acreditar que faço isso assim de bom grado. Acharia melhor que isso fosse menos tortuoso".


Esta concepção lacaniana vem, ao nosso ver, determinar seu estilo, e a tradução só pode acompanhar e não simplificar - aclimatando, desfazendo as torsões, as inversões e as repetições - em nome de uma suposta legibilidade. A tradução aqui não se pretende uma hermenêutica do texto lacaniano mas, antes de tudo, vem testemunhar a prevalência da letra e do jogo do significante. Esta seria nossa única fidelidade, aceitando o risco de tornar o texto estranho em português, mas não estrangeiro à língua. Isto não quer dizer que seja uma tradução "ao pé da letra", mas antes uma tradução que pretende não escamotear o real da letra como impossível. Trazer para o interior mesmo da tradução do texto de Lacan o impossível como categoria lógica afasta-nos de uma certa linha de tradução que, face ao real da letra, trabalha no luto ou na impotência.


Lacan, é preciso que se saiba, forçou a língua francesa, subverteu expressões, criou neologismos semânticos e lexicais, propôs ele próprio traduções nada ortodoxas, forçou a ortografia e a sintaxe. Assim, reproduzimos a variação dos estilos - ora coloquial, ora formal -, mantivemos as repetições e pausas sempre que percebemos sua função enfática no contexto e aceitamos até mesmo o desafio de deixar, como no original, frases inconclusas.


Seguindo a mesma lógica, preferimos também, tanto quanto foi possível, não carregar o texto com notas de tradução. Ao invés de explicar em nota o significado de um neologismo, buscamos criar, a partir das leituras possíveis e com os recursos de nossa língua, um termo neológico. Essa opção pode ser exemplificada pela criação da forma verbal gossou. Em francês, ela se apresenta na palavra-valise je souis, onde se pode ler je suis (eu sou) e je jouis (eu gozo). Calcados na fórmula cartesiana que, em português, dispensa o pronome de primeira pessoa - "penso, logo sou" - unimos em uma nova forma verbal as duas possibilidades. Por outro lado, mantivemos, por exemplo, a tradução de semblant por semblante, tentativa de preservar a raiz latina sem/um, importante de guardar neste conceito já que não há outra unidade a não ser o próprio significante.


Tentamos, pois, laborar nossa língua para fabricar um texto em que os rastros deste trabalho de Lacan com a linguagem não fossem apagados. Que esta tradução seja mais um convite para a discussão da tradução de Lacan no Brasil, que vem ocupando todos aqueles interessados pela transmissão da psicanálise.


Tradução: Ângela Jesuino Ferretto, Celina Ary Mendes Garcia, Gilles Garcia, Luiz Alberto de Farias, Maria Roneide Cardoso Gil e Patricia Chittoni Ramos - Grupo inscrito na Association Freudienne Internationale.


Paris, novembro de 2001.


J. Lacan - Tomei posição na psicanálise, em 1953, muito exatamente. Houve um primeiro congresso em outubro, em Roma. Acredito - não perguntei - mas imagino que se pensou em algo como um aniversário para mim: não é pouco, vinte e um anos; foram os vinte e um anos durante os quais ensinei de uma maneira que recortou, por assim dizer, minhas posições. Já tinha começado meu ensino dois anos antes de 1953. Talvez tenha sido nisso que se tenha pensado.


Por outro lado, eu não tinha nenhuma razão para objetar a isso, tanto mais que Roma, apesar de tudo, é um lugar que conserva um grande alcance, e muito especialmente para a psicanálise. Se por acaso - não se sabe, pode acontecer - vocês vierem ouvir o que eu preparei, porque preparei algo para eles, que esperavam que eu falasse; eu não quis que isso fosse anunciado, mas preparei algo; preparei até mesmo com muito cuidado, devo frisar; se por acaso vocês vierem, ouvirão algo que diz respeito às relações da psicanálise com a religião. Elas não são muito amigáveis. Em suma, é ou uma ou a outra. Se a religião triunfar, como é o mais provável - falo da verdadeira religião, não há senão uma verdadeira - se a religião triunfar, isso será sinal de que a psicanálise fracassou. É muito normal que ela fracasse, porque aquilo ao qual se consagra é muito, muito difícil. Mas, enfim, como não tenho a intenção de fazer uma conferência agora, só posso dizer isso, é que a psicanálise é algo de muito difícil.


A senhora é jornalista de que jornal?


Sra. X - Agence Centrale de Presse de Paris.


J. Lacan - É algo muito difícil, a psicanálise. Primeiramente, é muito difícil ser psicanalista, porque é preciso colocar-se numa posição que é totalmente insustentável. Freud já tinha dito isso. É uma posição insustentável, a do psicanalista.


Sra. X - Quantos alunos do Dr. Lacan estarão neste Congresso?


J. Lacan - Neste Congresso? Não tenho idéia.


Sra. X - Quantos participantes?


J. Lacan - Há muito mais participantes neste Congresso, suponho, do que as pessoas de minha Escola. Porque há uma espécie de curiosidade em torno de mim. É maluco, mas é assim.


Sra. X - Mas é motivada, essa maluquice?


J. Lacan - Motivada pela minha, provavelmente. Mas eu, naturalmente, não estou a par.


Sra. X - Creio que minha agência concorrente quer tomar a palavra.


Sr. Y - (inaudível)


Sra. X - Eu estava simplesmente perguntando ao Professor Lacan por que ele dizia que o psicanalista encontrava-se numa posição insustentável?


J. Lacan - Quando eu disse isso, salientei que não era o primeiro a dizê-lo. Há alguém em quem podemos confiar em relação ao que falou sobre a posição do psicanalista, que é muito, muito precisamente, Freud. Então Freud ampliava isso; ele disse que havia um certo número de posições insustentáveis dentre as quais colocava "governar" - como vocês vêem, isso significa primeiramente que uma posição insustentável é justamente aquilo em direção ao qual todo mundo se precipita, já que para governar nunca faltam candidatos - é como para a psicanálise, não faltam candidatos.


Depois Freud acrescentava ainda: educar. Para isso, então, faltam menos candidatos ainda. É uma posição que se considera como sendo até mesmo vantajosa; quero dizer que também para isso não somente não faltam candidatos, mas não faltam pessoas que recebem o carimbo, isto é, que são autorizadas a educar. Isso não significa que elas tenham a mais vaga idéia do que é educar. Mas, enfim, isso sugere, no entanto, muitas meditações. As pessoas não se dão bem conta do que querem fazer quando educam. Raramente refletem sobre isso. Mas, enfim, o sinal de que há entretanto algo que pode, pelo menos de vez em quando, inquietá-las é que, às vezes, elas são tomadas de uma coisa que é muito particular, que somente os analistas conhecem realmente bem, elas são tomadas de angústia. São tomadas de angústia quando pensam nisso, no que significa educar. Mas, contra a angústia, há montes de remédios. Em particular, há um certo número de coisas que se chama de "concepções do homem", do que é o homem. Isso varia muito. Ninguém se dá conta disso, mas isso varia enormemente, a concepção que se pode ter do homem.


Existe um livro muito bom que foi publicado e que diz respeito a isso, à educação. É um livro organizado por Jean Chateau. Jean Chateau era um aluno de Alain. Falo disso porque é um livro pelo qual me interessei há bem pouco tempo. Ainda não o terminei. É um livro absolutamente sensacional. Começa em Platão e continua com um certo número de pedagogos. E a gente percebe no entanto que a base, o que se chama de base da educação, isto é, uma certa idéia do que é preciso para fazer homens - (como se fosse a educação que os fizesse; na verdade, é bem certo que não é obrigatório que o homem seja educado; ele faz sua educação sozinho; seja como for, ele se educa, já que é preciso que aprenda alguma coisa, que pene um pouco), mas, enfim, os educadores, propriamente falando, são pessoas que pensam que podem ajudá-los, e até mesmo que haveria ao menos uma espécie de mínimo a dar para que os homens sejam homens, e que isso passa pela educação. Na verdade, eles não estão errados. É preciso, de fato, que haja uma certa educação para que os homens consigam suportar-se entre si.


Em relação a isso, há o analista. As pessoas que governam, as pessoas que educam têm uma diferença considerável em relação ao analista: isso se fez desde sempre. E eu repito que isso abunda, quero dizer que não se pára de governar e que não se pára de educar. Já o analista, este não tem nenhuma tradição. É um recém chegado. Quero dizer que, dentre as posições impossíveis, ele encontrou uma nova. Então não é particularmente cômodo sustentar uma posição na qual, para a maioria dos analistas, tem-se apenas um pequenino século atrás de si para se orientar. Isso é algo realmente muito novo e reforça o caráter impossível da coisa. Quero dizer que se tem realmente que descobri-la.


É por isso que é entre os analistas, isto é, lá, a partir do primeiro deles, que devido à posição que ocupam, que eles descobriam e da qual percebiam muito bem o caráter impossível, eles a fizeram incidir sobre a posição de governar e a de educar; como eles, ainda se encontram na fase do despertar; isso lhes permitiu perceber que, afinal de contas, tanto as pessoas que governam como as pessoas que educam não têm a mínima idéia do que fazem. Isso não as impede de fazê-lo, nem mesmo de fazê-lo mais ou menos bem, porque, afinal, governantes, precisa-se deles, e os governantes governam, este é um fato; não somente governam mas isso dá prazer a todo mundo.


Sra. X - Voltamos a Platão.


J. Lacan - Sim, voltamos a Platão. Não é difícil achar Platão. Platão disse uma enormidade de banalidades, e naturalmente nós as achamos.


Mas é certo que a chegada do analista à sua própria função permitiu lançar uma espécie de luz rasante sobre as outras funções. Consagrei um ano inteiro, precisamente todo um seminário, a esse ponto, explicando a relação que deriva da existência dessa função totalmente nova que é a função analítica, e como isso ilumina as outras. Então, isso me levou, é claro, a nela mostrar articulações que não são comuns - porque se fossem comuns, não diferiam - e a mostrar como isso pode ser manipulado, e de um certo modo de uma maneira realmente muito, muito simples. Há quatro pequenos elementos que giram. E naturalmente os quatro pequenos elementos mudam de lugar, e isso termina por produzir coisas muito interessantes.


Há algo de que Freud não tinha falado, porque era uma coisa tabu para ele, era a posição do cientista, a posição da ciência. A ciência tem uma chance, é uma posição igualmente impossível, só que ela não tem ainda a menor idéia disso. Eles mal começam agora, os cientistas, a ter crises de angústia! Eles começam a se perguntar - é uma crise de angústia igual a qualquer outra crise de angústia, a angústia é uma coisa totalmente fútil, totalmente cagona - mas é divertido ver que os cientistas, os cientistas que trabalham em laboratórios muito sérios, nestes últimos tempos de repente vimos alguns que se alarmaram, que "amarelaram", como se diz - vocês falam francês? Vocês sabem o que é amarelar? Amarelar é ficar com medo -, que se disseram: "mas se todas essas bacteriazinhas com as quais fazemos coisas tão maravilhosas, suponham que, um dia, depois que tivéssemos feito delas realmente um instrumento absolutamente sublime de destruição da vida, suponham que um indivíduo as tirasse do laboratório?"


Em primeiro lugar, eles ainda não chegaram lá, isso ainda não aconteceu, mas começam assim mesmo a ter uma pequena idéia de que poderiam fazer bactérias super resistentes a tudo e que, a partir desse momento, não se conseguiria mais pará-las, e que talvez isso limpasse a superfície do globo de todas essas merdinhas, particularmente humanas, que o habitam. E então eles se sentiram de repente tomados por uma crise de responsabilidade. Fizeram o que se chama de embargo sobre um certo número de pesquisas - talvez tenham tido uma idéia, afinal de contas, não tão ruim do que fazem, quero dizer, que é verdade que isso poderia talvez ser muito perigoso; não acredito nisso; a animalidade é imperecível; não são as bactérias que nos desembaraçarão de tudo isso! Mas eles tiveram uma crise de angústia, é tipicamente a crise de angústia. E então lançaram uma espécie de proibição, provisória pelo menos, disseram-se que era preciso refletir com cautela antes de levar muito longe certos trabalhos sobre as bactérias. Seria um alívio sublime se, de repente, nos encontrássemos diante de um verdadeiro flagelo, um flagelo saído das mãos dos biólogos, seria realmente um triunfo, isso significaria realmente que a humanidade teria chegado a algo, à sua própria destruição, por exemplo, este é realmente o sinal da superioridade de um ser sobre todos os outros, não somente sua própria destruição, mas a destruição de todo o mundo vivo! Mas isso dá ainda assim um pouco de angústia. Ainda não chegamos lá.


Como a ciência não tem nenhuma idéia do que faz, exceto quando tem uma dessas crisezinhas de angústia, ela vai ainda assim continuar por um certo tempo e, provavelmente por causa de Freud, ninguém pensou em dizer que era tão impossível ter uma ciência, uma ciência que dê resultados, quanto governar e educar. Mas se, no entanto, conseguimos ter uma pequena suspeita disso é por causa da análise. Porque a análise, esta, ela está realmente aí. A análise, não sei se vocês estão a par, a análise ocupa-se muito especialmente daquilo que não funciona; é uma função mais impossível ainda do que as outras, mas graças ao fato de que se ocupa do que não funciona, ela se ocupa dessa coisa que se deve chamar por seu nome, e devo dizer que continuo sendo o único a tê-la chamado assim, e que se chama o real.


A diferença entre o que funciona e o que não funciona é que a primeira coisa é o mundo, o mundo anda, ele gira, é sua função de mundo; para perceber que não há mundo, ou seja, que há coisas que só os imbecis acreditam estar no mundo, basta observar que existem coisas que fazem com que o mundo seja imundo, se posso me expressar assim; é disso que se ocupam os analistas; de modo que, contrariamente ao que se acredita, eles se confrontam muito mais com o real mesmo do que os cientistas; eles só se ocupam disso. E como o real é o que não funciona, eles são, além disso, forçados a se submeter a ele, isto é, forçados todo o tempo a expor-se. Para isso, é preciso que sejam super blindados contra a angústia.


Já é alguma coisa que ao menos eles possam, da angústia, falar dela. Falei um pouco dela em uma época. Isso fez um pouco de efeito; causou um torvelinho. Houve um indivíduo que me procurou depois disso, um de meus alunos, alguém que tinha seguido o seminário sobre a angústia durante um ano inteiro, que veio e estava absolutamente entusiasmado, era justamente o ano em que tinha ocorrido na psicanálise francesa (enfim, o que se chama assim) a segunda cisão; ele estava tão entusiasmado que pensou que era preciso me pôr dentro de um saco e me afogar; gostava tanto de mim que esta era a única conclusão que lhe parecia possível.


Eu briguei com ele; até mesmo botei ele pra fora, com palavras ofensivas. Isso não o impediu de sobreviver e mesmo de aderir finalmente à minha Escola. Vejam como são as coisas. São feitas de coisas burlescas. Talvez seja isso o que se pode esperar de um futuro da psicanálise, é se ela se destina suficientemente ao burlesco. É isso, acho que respondi um pouco.


Sra. Y - O senhor poderia precisar em que a Ecole Freudienne de Paris distingue-se das outras escolas?


J. Lacan - Somos sérios nela. É a distinção decisiva.


Sra. Y - As outras escolas não são sérias?


J. Lacan - De jeito nenhum.


Sra. Y - Agora há pouco, o senhor disse "se a religião triunfar, a psicanálise terá fracassado". O senhor pensa que se vai hoje a um psicanalista como se ia antes ao seu confessor?


J. Lacan - Eu sabia que iam me fazer essa pergunta! Essa história de confissão é uma história para boi dormir. Por que vocês acham que as pessoas se confessam?


Sra. Y - Quando as pessoas vão ao psicanalista, elas se confessam também.


J. Lacan - Mas de jeito nenhum! Não tem nada a ver. É o bê-a-bá começar por explicar às pessoas que elas não estão ali para se confessar. Elas estão ali para dizer, para dizer qualquer coisa.


Sra. Y - Como o senhor explica esse triunfo da religião sobre a psicanálise?


J. Lacan - Não é absolutamente por intermédio da confissão.


Sra. Y - O senhor disse "se a religião triunfar, a psicanálise terá fracassado". Como o senhor explica o triunfo da psicanálise sobre a religião?


J. Lacan - A psicanálise não baterá a religião; a religião é imperecível. A psicanálise não triunfará, ela sobreviverá ou não.


Sra. Y - Por que ter empregado essa expressão do triunfo da religião sobre a psicanálise? O senhor está persuadido de que a religião triunfará?


J. Lacan - Sim, ela não triunfará somente sobre a psicanálise, ela triunfará sobre muitas outras coisas ainda. Nem mesmo se pode imaginar o quão poderosa é a religião. Recém falei um pouco do real. A religião vai ter também aqui muito mais razões para apaziguar os corações, se assim se pode dizer, porque o real, por menos que a ciência queira se envolver, a ciência de que falava há pouco, é novidade, a ciência, ela vai provocar um monte de rebuliço na vida de cada um. E a religião, sobretudo a verdadeira, tem recursos que nem se pode imaginar. Basta ver por enquanto como ela fervilha; é absolutamente fabuloso. Eles levaram tempo, mas de repente compreenderam qual era sua chance com a ciência. A ciência vai introduzir tais convulsões que será preciso que, a todas essas convulsões, eles dêem um sentido. E, no que diz respeito ao sentido, eles sabem o que fazem. São capazes de dar um sentido, pode-se dizer, realmente a qualquer coisa, um sentido à vida humana, por exemplo. São formados para isso. Desde o começo, tudo o que é religião consiste em dar um sentido às coisas que eram outrora as coisas naturais. Mas não é porque as coisas vão-se tornar menos naturais, graças ao real, não é por isso que se vai parar de produzir o sentido. E a religião vai dar um sentido às provas mais curiosas, aquelas sobre as quais justamente os próprios cientistas começam a ter uma pontinha de angústia; a religião vai encontrar para isso sentidos espantosos. Basta ver como as coisas funcionam agora. Eles estão se atualizando.


Sra. Y - A psicanálise vai-se tornar uma religião?


J. Lacan - A psicanálise? Não, pelo menos eu espero que não. Mas talvez ela se torne, de fato, uma religião, quem sabe, por que não? Mas não acho que este seja meu viés. Penso que a psicanálise não aconteceu em um momento histórico qualquer; ela aconteceu correlativamente a um passo capital, a um certo avanço do discurso da ciência. A análise aconteceu aí - vou-lhes dizer o que digo sobre isso em minhas notas, nesta coisa que cogitei para este Congresso: a psicanálise é um sintoma. Só que é preciso compreender de quê. Ela é em todo caso claramente, como disse Freud, (porque ele falou de Mal-estar da civilização) - a psicanálise faz parte desse mal-estar da civilização. Então, o mais provável é, no entanto, que não vai se ficar na constatação de que o sintoma é o que há de mais real. Vão nos produzir sentido a dar com um pau, e isso nutrirá não somente a verdadeira religião, mas um monte de falsas.


Sra. Y - O que isso quer dizer, a verdadeira religião?


J. Lacan - A verdadeira religião é a romana. Tentem colocar todas as religiões no mesmo saco e fazer, por exemplo, o que se chama de história das religiões, é realmente horrível. Há uma verdadeira religião, é a religião cristã. Trata-se apenas de saber se essa verdade aguentará, ou seja, se ela será capaz de produzir sentido de modo que se fique realmente afogado nele. E é certo que ela conseguirá, porque tem recursos. Já existem montes de coisas que são preparadas para isso. Ela interpretará o Apocalipse de São João. Muitas pessoas já o tentaram. Ela encontrará uma correspondência de tudo com tudo. É até mesmo sua função.


Já o analista é outra coisa bem diferente. Ele está numa espécie de momento de metamorfose. Durante um breve momento, pôde-se perceber o que era a intrusão do real. O analista, este, fica nisso. Ele está ali como um sintoma, e só pode durar a título de sintoma. Mas vocês verão que se curará a humanidade da psicanálise. De tanto afogá-lo no sentido, no sentido religioso, evidentemente, se conseguirá recalcar este sintoma. A senhora está acompanhando? Uma luzinha se acendeu no seu juízo? A minha posição não lhe parece moderada?


Sra. Y - Estou escutando.


J. Lacan - A senhora está escutando.. sim. Mas será que a senhora pesca aí alguma coisinha que se pareça com o real?


Sra. Y - (início inaudível) ... cabe a mim, depois, fazer uma espécie de síntese.


J. Lacan - A senhora vai fazer uma síntese? A senhora tem sorte! De fato, tire disso o que conseguir.


Um breve instante, teve-se um clarão de verdade com a psicanálise. Isso não vai forçosamente durar.


Sr. X - (fala italiano) - tradução: Este senhor leu seus Escritos em italiano, na coleção que se chama "Cosa freudiana".


J. Lacan - Como? Não há coleção "Cosa freudiana".


Intérprete - Sob o título "Cosa freudiana" há diversos artigos.


J. Lacan - É com esse título que são traduzidos meus Escritos, a Cosa freudiana? Eu pensava que era um artigo bem específico. La chose freudienne, em francês, é o título de um de meus Escritos. Intérprete - Então, o livrinho que contém cinco ou seis artigos seus, traduzido há dois ou três anos, chama-se Cosa freudiana.


Sr. X - (em italiano) Este senhor está dizendo que os Escritos são muito obscuros, muito difíceis de compreender e que alguém que quiser compreender seus próprios problemas lendo esses textos encontra-se numa profunda desamparo e pouco à vontade.


A segunda impressão é esta: o senhor é um dos mais célebres representantes do retorno a Freud. Ora, a impressão superficial que ele tem da coisa é que esse retorno a Freud é um pouco problemático. Este senhor diz que a sua retomada de Freud, dos textos freudianos, torna a leitura de Freud ainda mais complicada.


J. Lacan - Talvez porque eu faça perceber o que o próprio Freud, aliás, levou muito tempo a fazer entrar na cabeça de seus contemporâneos. Deve-se dizer que, quando Freud publicou "A interpretação dos sonhos", ele não vendeu muito, venderam-se - não sei, numa época eu sabia, e não gostaria de passar um dado totalmente errado, mas são cerca de trezentos exemplares em quinze anos. Freud teve que se esforçar muito para forçar, para introduzir no pensamento de seus contemporâneos algo tão específico e, ao mesmo tempo, tão pouco filosófico. Não é porque ele tomou de não sei quem, de Herbart, a palavra Unbewusste, que não era absolutamente o que os filósofos chamavam "inconsciente"; isso não tinha nenhuma relação.


Foi isso que me esforcei para demonstrar, é como o inconsciente de Freud se especifica; os universitários conseguiram pouco a pouco digerir o que Freud, com muita habilidade aliás, esforçara-se para lhes tornar comestível, digerível, o próprio Freud prestou-se à coisa, querendo convencer; o sentido do retorno a Freud é este: mostrar o que há de decisivo na posição de Freud, no que Freud tinha descoberto, no que Freud colocava em jogo de uma maneira, eu diria, completamente inesperada, porque era realmente a primeira vez que se via surgir algo que não tinha estritamente nada a ver com o qualquer um dissera antes. O inconsciente de Freud é isso, é a incidência de algo que é completamente novo.


Então, não estou totalmente surpreso já que o senhor só fala italiano, pelo menos é o que suponho, senão por que não me falaria em francês; se o senhor lê meus Escritos traduzidos para o italiano, vou-lhe dizer, primeiramente, que talvez eles não estejam bem traduzidos; não posso verificar, não tenho condições de verificar; o tradutor veio freqüentemente me pedir conselhos para se esclarecer mas ele tem lá suas ideiazinhas, o que eu respondi talvez não lhe tenha servido muito.


E depois também vou-lhe dizer algo que é característico de meus Escritos: é que meus Escritos, eu não os escrevi para que fossem compreendidos, eu os escrevi para que fossem lidos, não é absolutamente a mesma coisa. É um fato que, contrariamente a Freud, há entretanto muitas pessoas que os lêem, certamente mais pessoas do que as que leram Freud em quinze anos; no fim, é claro, Freud teve um enorme sucesso de vendas. Mas ele esperou muito tempo por isso. Quanto a mim, jamais esperei nada parecido. Foi uma grande surpresa para mim quando soube que meus Escritos se vendiam. Jamais compreendi como isso pode acontecer. O que constato, em contrapartida, é que mesmo que não sejam compreendidos, eles provocam algo nas pessoas. Freqüentemente observei isso. Elas não compreendem nada, é totalmente verdade, durante um certo tempo, mas alguma coisa as toca. E é por isso que eu seria levado a crer, contrariamente ao que se imagina de fora, imagina-se que as pessoas compram simplesmente meus Escritos e que não os abrem; isso é um erro; elas os abrem, e até mesmo trabalham neles; e chegam a se exaurir fazendo isso; porque evidentemente, quando se começam meus Escritos, o que se pode fazer de melhor, de fato, é tentar compreendê-los; e como não são compreendidos - não fiz de propósito para que não fossem compreendidos, mas, enfim, isso foi uma conseqüência das coisas, eu falava, eu dava aulas, muito seguidas e muito compreensíveis, mas como eu só transformava isso em texto escrito uma vez por ano, naturalmente isso dava um texto que, em relação ao volume do que eu tinha dito, era uma espécie de concentrado totalmente inacreditável, que deve de alguma maneira ser posto na água como as flores japonesas, para vê-lo se desdobrar. É uma comparação que vale como qualquer outra.


O que posso lhe dizer é que é bastante habitual, eu sei como as coisas se produzem porque já me aconteceu de escrever, há bastante tempo mesmo, é bastante habitual que em dez anos um de meus Escritos se torne transparente, meu caro. Até mesmo o senhor compreenderia! Dentro de dez anos, meus Escritos, mesmo na Itália, mesmo traduzidos do jeito que estão, lhe parecerão ninharia, lugares comuns. Porque há algo que é no entanto bastante curioso, é que até mesmo textos, que são textos muito sérios, tornam-se finalmente lugares comuns. Dentro de muito pouco tempo, o senhor verá, se encontrará Lacan em todas as esquinas! Assim como Freud! No fim, todo mundo pensa ter lido Freud, porque Freud está em toda parte, está nos jornais, etc. Isso vai me acontecer, a mim também, o senhor verá, assim como poderia acontecer a qualquer um que se aplicasse a isso - se se fizessem coisas um pouco rigorosas, é claro, rigorosas em torno de um ponto bem preciso que é o que chamo de sintoma, ou seja, o que não funciona.


Houve um momento na história em que havia um número suficiente de pessoas desocupadas para se dedicarem muito especialmente ao que não funciona, e dar uma fórmula do "que não funciona" em estado nascente, se assim posso dizer. Como expliquei há pouco, tudo isso se porá a girar em círculo, isto é, na realidade, a ficar afogado sob as mesmas coisas mais nojentas dentre aquelas que conhecemos há séculos e que naturalmente se restabelecerão. A religião, eu lhes digo, é feita para isso, é feita para curar os homens, quer dizer que eles não percebem o que não funciona. Houve uma pequena chama - entre dois mundos, se posso dizer assim, entre um mundo passado e um mundo que vai se reorganizar como um soberbo mundo vindouro. Não acho que a psicanálise detenha uma chave qualquer do futuro. Mas terá sido um momento privilegiado durante o qual se terá tido uma medida bem justa do que é o que chamo em um discurso de "falasser". O falasser é uma maneira de expressar o inconsciente. O fato de que o homem seja um animal falante, o que é totalmente imprevisto, o que é totalmente inexplicável, saber o que é, com o que isso se fabrica, essa atividade da fala, é uma coisa sobre a qual tento trazer algumas luzes no que vou falar neste Congresso. Isso está muito ligado a certas coisas que Freud tomou como sendo da ordem da sexualidade e, com efeito, isso tem uma relação, mas se relaciona à sexualidade de uma maneira muito, muito particular.


É isto. Então o senhor verá. Guarde esse livrinho no seu bolso e releia-o em quatro ou cinco anos, o senhor verá que então vai lamber os beiços!


Sr. Y - (em italiano) tradução: Segundo o que eu compreendi, na teoria lacaniana geral, na base do homem não está a biologia ou a fisiologia, está a linguagem. Mas São João já tinha dito isso: "No começo, era o Verbo". O senhor não acrescentou nada a isso.


J. Lacan - Acrescentei uma coisinha. São João começa seu evangelho dizendo que "No começo, era o Verbo". Com isso, eu estou bem de acordo. Mas antes do começo, onde é que ele estava? É isso que é realmente impenetrável. Porque ele disse "No começo, era o Verbo", isso é o evangelho de São João. Só que há uma outra coisa chamada Gênese, que não deixa totalmente de ter relação com este troço, o Verbo. Naturalmente, juntaram-se as pontas dizendo que o Verbo dizia respeito a Deus pai e que se reconhecia bem que a Gênese era tão verdadeira quanto o evangelho de São João, visto que Deus, era com o Verbo que ele criava o mundo. É um negócio engraçado este!


Na Escritura judaica, a Escritura Santa, vê-se muito bem para que serve o fato de que o Verbo tenha estado de algum modo não no começo mas antes do começo, é que graças a isso, como ele estava antes do começo, Deus se crê no direito de fazer todo tipo de reprimendas às pessoas a quem ele deu um presentinho, do tipo "piopio, piopio, piopio, piopio...", como se dá às galinhas, ele ensinou a Adão a nomear as coisas, ele não lhe deu o Verbo, porque isso seria demais; ele lhe ensinou a nomear. Não é grande coisa nomear, sobretudo se, além disso, todos esses nomes são... (fim da primeira bobina)


...isto é, algo bem à proporção humana. Os seres humanos só pedem isto, que as luzes sejam suavizadas. A Luz em si é absolutamente insuportável. Aliás, jamais se falou de luz, no século das Luzes, falou-se de Aufklärung. "Tragam uma pequena lâmpada, por gentileza". Já é muito. Já é até mesmo mais do que podemos suportar.


Então, eu sou por São João e seu "No começo, era o Verbo", mas é um começo que, com efeito, é completamente enigmático. Isso quer dizer o seguinte: as coisas não começam, para este ser carnal, este personagem repugnante que no entanto se deve chamar de homem médio, as coisas não começam para ele, quero dizer, o drama só começa quando há o Verbo na jogada, quando o Verbo, como diz a religião - a verdadeira - quando o Verbo se encarna. É quando o Verbo se encarna que as coisas começam a ir muito mal. Ele não é mais feliz de jeito nenhum, ele não se parece mais de jeito nenhum com um cachorrinho que balança o rabo nem tampouco com um bravo macaco que se masturba. Ele não se parece com mais nada. Ele é devastado pelo Verbo.


Então, eu também, eu penso que é o começo, é claro. O senhor me dirá que eu não descobri nada. É verdade. Jamais pretendi descobrir algo. Todos os expedientes que usei foram expedientes que fabriquei aqui e ali. E sobretudo, imagine, tenho uma certa experiência desta profissão sórdida que se chama ser analista. E então nela aprendo assim mesmo alguma coisa. E direi que o "No começo, era a Verga" tem mais peso para mim, porque vou lhes dizer uma coisa: se não houvesse o Verbo, que, é preciso dizer, faz com que gozem, todas essas pessoas que me procuram, porque é que elas retornariam se não fosse para, cada vez, tirar um sarro com o Verbo? Eu me dou conta disso sob esse ângulo. Isso lhes dá prazer, elas jubilam. Eu lhes digo, sem isso por que eu teria clientes, por que eles voltariam tão regularmente, durante anos, vocês se dão conta?! É mais ou menos isso. No começo da análise em todo caso, isso é certo. Para a análise, é verdade, no começo é o Verbo. Se não houvesse isso, não vejo por que a gente estaria nessa juntos!


Sr. X - (em italiano) A psicanálise entrou realmente numa crise irremediável? Será que as relações do homem não se tornaram tão problemáticas porque este real é tão invasivo, tão agressivo, tão obsedante... (continuação inaudível)


J. Lacan - Tudo o que temos de real até agora é pouca coisa perto do que... do que ainda assim não se pode imaginar porque justamente o próprio do real é que não o imaginamos.


Sr. Z - A questão tratava do papel da psicanálise hoje em dia. O senhor dizia agora há pouco que a psicanálise estabelecia a relação do indivíduo com o real. A questão era que, tendo o real se tornado tão agressivo, tão "obsessivo", como dizia aquele senhor, não seria necessário, ao contrário, liberar o homem do real e, por conseguinte, a psicanálise não tem mais razão de ser.


J. Lacan - Se o real se torna suficientemente agressivo... Sr. X - Cioé che il reale é diventato cosi distruttivo che l'única possibilità di salvezza è la sottrazione al reale, perché la psicanalisi a cessato completamente la sua funzione. Intérprete - A única salvação possível face a esse real que se tornou tão destrutivo... J. Lacan - Seria banir completamente o real? Intérprete - E este senhor falou de esquizofrenia coletiva. De onde o fim do papel da psicanálise tal como foi apresentada.


J. Lacan - Esta é uma maneira pessimista de representar o que acredito mais simples: o triunfo da verdadeira religião. É uma maneira pessimista. Tachar a verdadeira religião de esquizofrenia coletiva é um ponto de vista muito especial, que é sustentável, tenho de convir. Mas é um ponto de vista muito psiquiátrico.


Intérprete - Este não é o ponto de vista de seu interlocutor; ele não falou de religião.


J. Lacan - Não, ele não falou de religião, mas eu acho que ele conflui de maneira surpreendente com aquilo de que parti, ou seja, que a religião, afinal de contas, podia muito bem resolver tudo isso. Não se deve dramatizar demais, no entanto. Deve-se poder se habituar ao real, quero dizer, ao real, naturalmente o único concebível, o único ao qual tenhamos acesso. Em nível do sintoma, ainda não é verdadeiramente o real, é a manifestação do real em nosso nível de seres vivos. Como seres vivos, somos roídos, mordidos pelo sintoma, isto quer dizer que, afinal, somos o que somos, somos doentes, é tudo. O ser falante é um animal doente. No começo era o Verbo, tudo isso diz a mesma coisa.


Mas o real ao qual podemos chegar é por uma via muito precisa, é a via científica, isto é, as pequenas equações. E esse real, o real real, se assim posso dizer, o verdadeiro real, é aquele justamente que nos falta completamente no que nos concerne, pois desse real, no que nos concerne, somos totalmente separados, por causa de uma coisa muito precisa que, embora jamais tenha conseguido demonstrá-la, creio que não superaremos nunca; nunca superaremos a relação entre esses falasseres que nós sexuamos como homem e esses falasseres que sexuamos como mulher. Aí, perdemos radicalmente os pedais; é mesmo isso o que especifica o que se chama geralmente de ser humano; sobre esse ponto, não há nenhuma chance de que isso dê certo algum dia; quer dizer, que tenhamos uma fórmula, uma coisa que se escreva cientificamente. De onde a abundância dos sintomas, porque tudo se liga a isso. É nisso que Freud estava certo ao falar do que chama de sexualidade. Digamos que a sexualidade, para o falasser, não tem esperança.


Mas o real ao qual chegamos com pequenas fórmulas, o verdadeiro real, isso é outra coisa muito diferente. Até agora, como seu resultado, só tivemos engenhocas, ou seja: envia-se um foguete à Lua, tem-se a televisão, etc. Isso come a gente , mas come por intermédio de coisas que mexem com a gente. Não é por nada que a televisão é devoradora. É porque isso nos interessa, ainda assim. Isso nos interessa por um certo número de coisas totalmente elementares, que poderiam ser enumeradas, das quais se poderia fazer uma lista muito, muito precisa. Mas, enfim, a gente se deixa consumir. É por isso que não estou entre os alarmistas nem entre os angustiados. Quando nos saciarmos, pararemos com isso; e nos ocuparemos das verdadeiras coisas, ou seja, do que chamo de religião.


Sr. A. - (início inaudível) mas talvez haja ainda assim alguma coisa, é que é difícil de abordar o real, o verdadeiro real e não somente o símbolo, se não for uma rachadura - isto é, que o real é transcendente; para alcançar esse algo que nos transcende.... (inaudível) aí existem, de fato, as engenhocas e, de fato, as engenhocas comem a gente.


J. Lacan - Sim, quanto a mim, não sou muito pessimista. Haverá um tamponamento da engenhoca. Sua extrapolação, quero dizer, sua maneira de fazer com que o real e o transcendente convirjam, devo dizer que isso me parece um ato de fé, porque na verdade... Sr. A. - Mas eu lhe pergunto o que não é um ato de fé!? J. Lacan - É isso que há de horrível, é que continuamos na feira.


Sr. A. - Eu disse fé, não disse feira! J. Lacan - Quanto a mim, é assim que traduzo fé. A fé é a feira. Há tantas fés, o Sr. compreende, fés que se aninham nos cantos, que, apesar de tudo, isso não se diz bem senão no fórum, isto é, na feira.


Sr. A. - Fé, fórum, feira, são jogos de palavras. J. Lacan - São jogos de palavras, é verdade. Mas dou enorme importância aos jogos de palavras, o senhor sabe. Isso me parece a chave da psicanálise.


Sr. B. - (em italiano) J. Lacan - Eu não sou absolutamente um filósofo.


Sr. B. - Una nozione ontologica, metafisica del reale... J. Lacan - Não é absolutamente ontológica.


Sr. A. - Ele disse: o professor Lacan emprega uma noção kantiana do real... J. Lacan - Mas isso não é absolutamente kantiano. É sobre isso mesmo que insisto, se há noção do real, ela é extremamente complexa e é, por essa razão, não apreensível, não apreensível de uma maneira que constituiria um todo. Parece-me uma noção inacreditavelmente antecipadora pensar que haja um todo do real; enquanto não tivermos verificado, creio que é melhor nos abstermos de dizer que o real é, seja no que for, um todo.


Recentemente li coisas sobre isso - na verdade, chegou-me às mãos um pequeno artigo de Henri Poincaré sobre a evolução das leis; vocês não conhecem certamente esse artigo, pois é impossível de encontrar; ele me foi dado, é uma coisa bibliófila; é a propósito do fato de que Boutroux se perguntara se não se podia pensar que as leis, por exemplo, podiam também ter uma evolução. Poincaré, que é matemático, arrepia-se ao pensar que possa haver uma evolução das leis, já que justamente o que o cientista busca é precisamente uma lei que não evolua.


Devo dizer que essas são coisas que acontecem por acidente, acontece por acidente que um filósofo seja mais inteligente que um matemático, isso é muito raro, mas aqui por acaso, Boutroux levantou uma questão que me parece totalmente capital. De fato, por que as leis não evoluiriam, considerando que pensamos um mundo como sendo um mundo que evoluiu? Por que as leis não evoluiriam? Poincaré sustenta categoricamente que o próprio de uma lei, quer dizer que, com uma lei, não somente domingo pode-se saber o que acontecerá na segunda, e na terça, mas que além disso ela funciona nos dois sentidos, ou seja, deve-se saber, graças a uma lei, o que aconteceu no sábado e também na sexta. Mas não se vê absolutamente por que o real não admitiria essa entrada de uma lei que se move.


É muito claro que aqui a gente se perde completamente, porque como estamos situados em um ponto preciso do tempo, como poder dizer o que quer que seja a respeito de uma lei que não é mais uma lei, em suma, segundo as palavras de Poincaré? Mas por que, afinal de contas, não pensar também que sobre o real podemos talvez um dia saber, sempre graças a cálculos, um pouquinho mais? Exatamente como para Auguste Comte, que dizia que jamais se saberia algo da química das estrelas: coisa curiosa, aparece um troço que se chama espectroscópio e sabemos muito precisamente coisas sobre a composição química das estrelas. Então, é preciso desconfiar, porque acontecem coisas, lugares de passagem absolutamente insensatos, que não se podiam certamente imaginar e absolutamente prever, que talvez façam com que tenhamos um dia uma noção da evolução das leis. Em todo caso, não vejo em quê o real é mais transcendente em relação a isso.


Acredito que é uma noção muito difícil de manejar. Aliás, até agora ela só foi empregada com uma extrema prudência.


Sr. X. - Este é um problema filosófico.


J. Lacan - É um problema filosófico, é verdade. Com efeito, há coisas, há pequenos domínios, onde a filosofia ainda teria algo a dizer. Infelizmente, é bastante curioso que a filosofia dê tantos sinais de envelhecimento, quero dizer que, bom, Heidegger disse duas ou três coisas sensatas; no entanto, faz muito tempo que a filosofia não diz nada de interessante para todo mundo. Aliás, jamais a filosofia diz algo interessante para todo mundo. Quando publica alguma coisa, a filosofia, ela diz coisas que interessam a duas ou três pessoas. E, além disso, há uma formação filosófica, isto é, que passa pela Universidade. Uma vez tendo passado pela Universidade, está acabado, não há mais nenhuma filosofia, nem mesmo imaginável. Alguém me atribuiu um kantismo agora há pouco, muito gratuitamente. Mas eu jamais escrevi senão uma coisa sobre Kant, é meu pequeno texto "Kant avec Sade"; para concluir, faço de Kant uma flor sádica. Ninguém, aliás, deu a menor atenção a esse artigo. Houve um sujeito que o comentou em algum lugar; nem sei se foi publicado. Mas ninguém nunca me respondeu sobre esse artigo. É verdade que sou incompreensível.


Sr. A - (em italiano) - Tradução: Minha imputação de kantismo é arbitrária. Como se tratava do real como transcendente, citei de passagem a "coisa em si", mas não é uma imputação de kantismo.


J. Lacan - Eu me esforço é para dizer coisas que colem à minha experiência de analista, isto é, a algo de conciso, porque nenhuma experiência de analista pode pretender se apoiar sobre gente suficiente para generalizar. Tento determinar com quê um analista pode sustentar-se a si mesmo, o que comporta de aparelho - se posso me expressar assim - de aparelho mental rigoroso a função de analista; quando se é analista, em que corrimão é preciso se segurar para não transbordar de sua função de analista. Porque, quando se é analista, tem-se todo o tempo a tendência a derrapar, a deslizar, a se deixar escorregar de traseiro na escada de costas, e no entanto isso é muito pouco digno da função de analista. É preciso saber permanecer rigoroso porque não se deve intervir senão de uma maneira sóbria e de preferência eficaz. Para que a análise seja séria e eficaz, tento estabelecer suas condições; isso parece entrar na seara filosófica, mas não é isso de jeito nenhum.


Não faço nenhuma filosofia; ao contrário, desconfio disso como da peste. E quando falo do real, que me parece uma noção totalmente radical para enodar algo na análise, mas não sozinha, há o que chamo de simbólico e o que chamo de imaginário, me seguro nisso como alguém se segura nas três cordinhas que são as únicas que permitem minha flutuação. Também a proponho aos outros, é claro, àqueles que desejam me seguir, mas eles podem seguir montes de pessoas que não deixam de lhes oferecer sua ajuda. O que mais me espanta é ter ainda tantas pessoas me acompanhando, porque não poso dizer que tenha feito algo para retê-las. Não fico no pé deles. Não temo absolutamente que as pessoas partam. Ao contrário, fico aliviado quando elas vão embora. Mas, enfim, àqueles que ficam sou, entretanto, agradecido de me retornar, de tempos em tempos, algo que me dá a sensação de que não sou completamente supérfluo naquilo que ensino, que eu lhes ensino alguma coisa que lhes presta serviço.


Foi muita gentileza de vocês terem me entrevistado tanto tempo...